O processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff não têm força política, nem conta com uma unidade da oposição para alcançar seu objetivo, acredita a cientista política Clarisse Gurgel, professora da Unirio. Ao anunciar a abertura do processo, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), interrompeu um cenário que agravava a crise política e forneceu os elementos que faltavam para o governo se rearranjar. No mesmo dia em que a bancada do PT comunicou que o colegiado no Conselho de Ética se colocaria a favor do prosseguimento do processo contra o presidente da Casa, a ação do peemedebista ainda colocou em maior evidência um jogo de negociação, antes nos bastidores.
Afora todo o processo burocrático que se desenrola com a abertura do processo de impeachment, no Legislativo e no Judiciário, e com todas as especulações acerca de cada um desses passos, um outro processo se estabelece. Clarissa Gurgel argumenta que o problema se torna solução para o governo e para o Partido dos Trabalhadores.
De acordo com a cientista política, neste momento e com as condições que estão dadas, o processo de impeachment fica esvaziado. Poderia ser conduzido, por exemplo, se Cunha estivesse com forças organizadas. Mas não está. E a oposição também apresenta pouca organização. "É um gesto vazio, uma mesa que saiu dos bastidores para o palco."
Com o processo de impeachment não mais como um instrumento de chantagem, mas como algo já posto, se produz um rearranjo no governo, e a dinâmica das negociações políticas, antes um tanto discretas, ganha visibilidade. A projeção do ministro-chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, é um dos sinais dessa reorganização.
Clarissa acredita que se a abertura do processo de impeachment tivesse demorado um pouco mais para acontecer, a situação da presidenta poderia ficar pior, até insustentável, já que vinha em um grande processo de desgaste. O número de concessões, por exemplo, seria muito grande. Poderia haver um agravamento das condições de trabalho e de vida no país.
A cientista política aproveita para reforçar que este cenário de crise, que penaliza principalmente os trabalhadores, trata-se especificamente de uma crise política, não econômica -- basta verificar os lucros alcançados por multinacionais no país, que registram "lucros estratosféricos". "A crise é efetivamente política, só que dando o nome de crise econômica", comentou Clarisse.
Argumentos do processo
Durante a entrevista em que anunciou que tinha acatado o pedido de impeachment, o presidente da Câmara disse que a motivação não era política, mas de natureza técnica, baseada nas pedaladas fiscais do governo federal. O Congresso Nacional, contudo, aprovava no momento da entrevista de Cunha a meta fiscal que permite fechar o ano de 2015 com déficit sem incorrer no crime de responsabilidade fiscal.
Clarisse explica que o argumento que fundamenta o processo de impeachment passa pela questão das metas fiscais (o que dificultaria o sucesso do projeto com a aprovação do déficit no Congresso). No entanto, o setor, ligado à oposição, que entrou com o pedido extrapolou esta fundamentação, e aponta para o que especificamente teria levado ao "rombo" -- como os casos envolvendo a Petrobras.
"O impeachment tem como fundamento final a questão da meta fiscal e, sem dúvida, se fosse só isso, seria suficiente, em princípio, para o processo de impeachment cair por terra, já que acabaram de aprovar a nova meta. Mas o processo tem como trânsito argumentativo para chegar a esse fundamento final as denúncias de corrupção. Esta, aliás, foi a palavra de ordem que mais circulou como fundamento ao menos fantasioso e emotivo para o pedido de impeachment nas ruas", diz a professora.
O que esvazia de conteúdo o pedido de impeachment, esclarece a analista, é uma questão política, não técnica. O PT, diante da ameça, se rearranja e toma para si as rédeas, na experiência que sempre teve. Também se fortalece a figura de Jaques Wagner, um dos mais fortes candidatos à presidência quando a Dilma surge como candidata.
Wagner levanta no debate público o que a cientista política avalia que deveria ter sido dito desde o início, que a palavra de ordem corresponde a uma fantasia ideológica, que relaciona o governo atual a uma "ditadura comunista", por exemplo, e que o impeachment aparece quando, na negociação política cotidiana, a oposição sai insatisfeita e tenta desestabilizar o governo. Assim como no mercado as relações se dão por via de troca, assim também é na política, também, igualando valores entre coisas diferentes.
"O mercado político tem esse artifício de transformar coisas diferentes em iguais. Oposição e situação são diferentes, mas são equivalentes. De um lado é 'Fora, Cunha', do outro 'Fora, Dilma', de um lado Conselho de Ética contra Cunha, do outro contra Dilma, de um lado acusações de corrupção contra Cunha, do outro contra setor ligado ao governo Dilma. Isso só é possível porque não há efetivamente um setor de esquerda no Brasil capaz de se apresentar como alternativa. Só é possível que a história do Brasil fique limitada a relações de mercado, em que as coisas são trocadas como se fossem iguais, porque não há algo efetivamente diferente, que extrapole a dinâmica da troca e desloque a história do Brasil para a perspectiva de mudança", analisa Clarisse. "O papel de dizer que é igual [um político e outro] é o que permite crer que a solução é apenas trocar", completa.
"No mercado político em que projetos políticos são negociados, como se tivessem valor de troca, aquilo que torna situação e oposição equivalentes - ou seja, com o mesmo valor - é o dinheiro, expresso no papel do empresariado como aquele que compra e vende a política. Por isto o Brasil está refém de mera relações de troca - de trocas de favores nos bastidores, no tal 'toma lá, dá cá', e agora, em cena, da troca entre Dilma e Cunha, no 'tira lá, põe cá'. O Brasil não precisa de troca, precisa de transformação", conclui.
Comentários
Postar um comentário